Influências e características do Direito Administrativo brasileiro - Direito francês e norte-america
- Admin
- 19 de out. de 2016
- 9 min de leitura
O Direito Administrativo brasileiro sofreu grande influência do Direito Administrativo francês e Direito norte-americano, o que já foi objeto de algumas provas, motivando, assim, meu estudo sobre o tema.
Como base utilizei o texto 'O Direito Administrativo brasileiro sob influência dos sistemas de base romanística e da common law' da Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao qual resumo em sequência.

Do Direito francês
(i) Autoexecutoriedade dos atos administrativos: que confere à Administração Pública o poder de proferir atos jurídicos unilaterais que criem obrigações para os particulares, independente de sua concordância ou de ratificação/autorização do Poder Judiciário.
Observação! Para Georges Vedel, as decisões executórias são um dentre quatro princípios essenciais que norteiam o Direito Administrativo francês, a qual "reconhece à Administração a prerrogativa de emitir unilateralmente atos jurídicos que criam obrigações para o particular, independente de sua concordância."
(ii) Princípio da legalidade: que subordina a Administração Pública à lei, e, mais modernamente, às normativas em geral (princípio da juridicidade), com o objetivo de garantir as liberdades individuais.
Observação 01! O Direito Administrativo francês era forjado principalmente pelos julgados realizados em âmbito de jurisdição administrativa (especialmente o Conselho de Estado), a quem competia analisar a aplicabilidade ou não do direito privado ao caso sob análise e preencher lacunas eventualmente existente. Esses julgados constituem hoje, na França, a principal fonte do Direito Administrativo se comparados à lei, fazendo com que o princípio da legalidade lá tenha o significado de submissão do Estado à jurisprudência administrativa, e não exatamente da lei em si, embora tenha se iniciado com um conceito mais legalista em si.
O Brasil, então, percorreu caminho contrário à França: da construção jurisprudencial do Direito Administrativo à sua positivação, enquanto a França era mais positivista e foi transitando para a construção jurisprudencial do Direito. Na prática, a previsão constitucional e legal dessas normas deixa o Direito Administrativo menos flexível, como se verá mais à frente, o que tem suscitado uma demanda, em especial da doutrina neoliberal, pela sua "privatização".
Observação 02! Para Georges Vedel, a legalidade é um dentre quatro princípios essenciais que norteiam o Direito Administrativo francês, obrigando a Administração a respeitar a lei.
(iii) Responsabilidade civil do poder público: assim como mencionado no post sobre Origem do Direito Administrativo, a criação de limitações à atuação estatal criaram também a responsabilização do Estado pelo extrapolamento desses limites.
Observação! Para Georges Vedel, a responsabilidade civil do Estado é um dentre quatro princípios essenciais que norteiam o Direito Administrativo francês, entendendo-se que é devido a ele que "as pessoas públicas devem reparar os danos causados aos particulares".
(iv) Conceito de serviço público e suas formas de delegação: "o serviço público é uma das atividades administrativas do Estado, podendo ser definido como a atividade material, concreta, que a lei outorga ao Estado, para atender as necessidades coletivas, sob um regime jurídico total ou parcialmente público. No conceito existem três elementos: a) o subjetivo, que corresponde à ideia de que o serviço público é atribuído ao Estado; este decide sobre a forma de gestão, direta ou indireta, que vai adotar; b) o elemento objetivo, que corresponde à prestação de atividade que atende a necessidades coletivas; c) o formal, que diz respeito ao regime jurídico, que é total [prestação direta] ou parcialmente público [prestação por pessoa jurídica de direito privado - empresas públicas, sociedades de economia mista, concessionária e permissionária de serviços públicos e parceiros privados]." (p. 12)
Há, nesse momento, crise do conceito de serviço público, devido às pressões para que o rol de atividades que contempla seja diminuído, especialmente em relação às atividades econômicas, considerando-se os postulados da ordem econômica de liberdade e livre iniciativa, que seriam contrários à ideia de exclusividade estatal dos serviços públicos, bem como à de participação do Estado em setores privados por meio de empresas estatais.
Ocorre que esse objetivo de eliminação ou diminuição do rol de atividades públicas é sempre delimitado pelo entendimento de que a iniciativa privada não tem o dever de prestar esses serviços, bem como não se submete aos deveres de universalização, continuidade e isonomia inerentes ao Estado. Ao revestir-se com o caráter público, então, a prestação de um serviço passa a ser obrigação do Estado, ainda que gere prejuízo ou seja prestado inteiramente com recursos públicos. Assim sendo, tem-se defendido, inclusive na União Europeia, a ideia de que serviços sociais e essenciais mantenham seu caráter público, enquanto há a privatização de atividades econômicas - assim como a privatização parcial que tem sido promovida a partir da legislação infraconstitucional nos setores de telecomunicações, energia elétrica, correios e portos no Brasil, a despeito do texto constitucional, devido às pressões da doutrina neoliberal.
(v) Autonomia do Direito Administrativo enquanto ramo de Direito Público: abrange o binômio liberdade e autoridade - liberdade no que tange o individualismo em todos os aspectos, inclusive o jurídico, e autoritarismo no reconhecimento de diversas prerrogativas (potestades públicas) à Administração Pública -, embora hoje se note que a tendência, "com relação a inúmeros institutos tradicionais do direito administrativo, é a de caminhar para uma privatização do próprio regime jurídico a que se submete a Administração Pública, para escapar às normas sobre licitação, contrato administrativo, concurso público, e outras formas constitucionais sobre serviços públicos, controles formais, regras sobre orçamento e contabilidade pública. Evidentemente, a fuga não pode e não será total (...) porque o regime jurídico a que se submete o particular que exerce atividade estatal é híbrido: se é verdade que atua sob o regime de direito privado, não é menos verdade que são de direito público as normas sobre os bens utilizados na prestação dos serviços, sobre responsabilidade civil perante os usuários, sobre os princípios aplicáveis à prestação do serviço, sobre os poderes exercidos pelo poder público, sobre as prerrogativas outorgadas ao particular [e sobre os próprios instrumentos utilizados pela Administração Pública para transferir a gestão de serviços públicos aos particulares - contratos de concessão, gestão, convênio e termos de parceria]." (fl. 16)
Exceção! "A Administração Pública nunca deixou de aplicar o direito privado em inúmeras hipóteses. No Direito brasileiro, por exemplo, ela celebra contratos de direito, cria empresas sujeitas ao regime das empresas privadas, contrata servidores sob regime da CLT.
Por isso mesmo, muitos autores, desde longa data, falam na existência de um direito administrativo em sentido amplo, que abrange o regime jurídico de direito público e o direito privado a que se submete a Administração Pública; e em direito administrativo em sentido estrito, correspondente a um regime jurídico de direito público, derrogatório e exorbitante do direito comum, com restrições e prerrogativas destinadas a garantir, de um lado, a autoridade do poder público e, de outro, respeitar os direitos dos cidadãos." (fl 17)
Do Direito norte-americano
(i) Sistema de unidade de jurisdição: ao contrário da França, que adota o sistema dualista do contencioso administrativo, que se caracteriza pela separação das autoridades administrativa e judiciária, havendo competência daquele para julgar os assuntos relativos à Administração Pública e aos serviços públicos e desse para julgar os casos referentes às relações privadas.
No Brasil, por sua vez, por inspiração do Direito norte-americano, adotamos o sistema uno, para o qual todos os casos, sejam de direito público e privado, competem à estrutura judiciária única do país.
Exceção 01! No entanto, durante a Ditadura Militar, a Emenda Constitucional nº 7/77 autorizou a criação de tribunais contenciosos administrativos, mas eles nunca chegaram a ser efetivamente instalados.
Exceção 02! No período do império houve a criação de um Conselho de Estado, mas esse não exercia função jurisdicional, e sim meramente consultiva em relação ao Imperador, sendo extinto com o término da Monarquia e do Poder Moderador. O mesmo ocorreu na França, antes que o Conselho de Estado se tornasse autônomo.
Observação 01! A jurisdição administrativa francesa não se confunde com os processos administrativos brasileiros, posto que esses são julgados pela Administração Pública e não disputam competência com o Poder Judiciário, e aqueles julgam casos que tenham a Administração Pública ou serviços públicos como objeto ou parte, excluindo-se a competência da jurisdição comum.
Observação 02! Para Georges Vedel, a separação das autoridades administrativa e judiciária é um dentre quatro princípios essenciais que norteiam o Direito Administrativo francês, "que determina as matérias para as quais os tribunais judiciais são incompetentes."
(ii) Jurisprudência como fonte do Direito: apesar de o princípio da legalidade na França hoje ser muito próximo à utilização da jurisprudência como fonte de Direito Administrativo, considera-se que essa é uma característica brasileira de influência norte-americana, tendo em vista que ambos os países possuem sistemas unos, permitindo o controle jurisdicional da Administração Pública.
Observação 01! A doutrina brasileira tinha forte inspiração no direito europeu continental, principalmente na França, o que acabava influenciando nossos juízes a aplicarem conceitos e teorias ainda não abarcados em nosso direito positivo, do que surgiu a importância da jurisprudência como fonte do Direito. Essa postura promoveu grande evolução do Direito Administrativo nacional, considerando o atraso do Legislativo em normatizar sobre seus temas, como ato e contratos administrativos, por exemplo. Só depois de consolidados jurisprudencialmente que o direito positivo passou a reproduzi-los, observando o que já era regra no Brasil por força jurisprudencial. Houve, assim, um "engessamento" do Direito Administrativo, que com previsão constitucional de muitos de seus temas, precisa que as alterações ocorram por via legislativa, e não judiciária, ou faz com que ocorram a despeito do texto constitucional.
Observação 02! Apesar do sistema de unidade da jurisdição, não se adotou no Brasil o princípio do stare decisis, que confere força obrigatória aos precedentes judiciais, conferindo a primazia ao princípio da legalidade de origem francesa, mencionado acima, segundo o qual a lei é a fonte primária do Direito, assim como assinalado em todas as nossas Constituições: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (CF, Art. 5º, II)
(iii) Submissão da Administração Pública ao controle jurisdicional: no que tange as normas editadas e decisões proferidas pelas agências reguladoras, e diversos outros atos praticados, que só podem ser analisados em relação à sua legalidade/juridicidade ou da lesão ou ameaça de lesão a direito quanto se tratar do mérito, ou seja, aos critérios de oportunidade e conveniência, que são elementos discricionários, ou em relação à legalidade/juridicidade dos elementos vinculados do ato.
Observação 01! Há hoje certa "pressão no sentido de ampliar a discricionariedade administrativa, fazendo, inclusive, ressuscitar a ideia de discricionariedade técnica, para reduzir o controle judicial sobre atos da administração." (pp. 17 e 18)
Observação 02! "A discricionariedade pode ser definida como a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o Direito." (p. 11)
A evolução do termo o fez sofrer uma diminuição do alcance da discricionariedade administrativa, do seguinte modo: no Estado Liberal de Direito, a discricionariedade só era limitada no tocante às restrições dos direitos individuais; no Estado Social de Direto, houve o fortalecimento do Poder Executivo (outorga de novas funções sociais e econômicas e atribuição de competência normativa - medidas provisórias, regulamentos autônomos, decretos-lei, leis delegadas, etc), a ampliação do conceito de legalidade para juridicidade e aumento da abrangência do controle estatal, segundo o qual "a Administração Pública só pode fazer o que a lei permitir"; enquanto no Estado Democrático de Direito, a juridicidade passa a ser substituída por todo o Direito, incluindo suas normas, valores e princípios, além de nova expansão da função normativa (agora através das agências reguladoras, no exercício de sua função reguladora), subdividindo os posicionamentos entre o neoliberal (que defende a Administração Pública Gerencial e, portanto, com maior margem de discricionariedade, com maior liberdade decisória aos seus dirigentes, sob o fundamento de que o Direito Administrativo "atrapalha" as reformas e exercício da função normativa pelas agências reguladoras) e conservadora (que se prende ao direito positivo e à Constituição, pregando uma maior limitação da Administração Pública e o controle jurisdicional de seus atos para decretar a inconstitucionalidade de leis ou a nulidade de atos administrativos), ambos os posicionamentos também aplicáveis em relação à chamada discricionariedade técnica.
(iv) Outorga de prerrogativas públicas às agências reguladoras ("agencificação"): as agências reguladoras, com a natureza de autarquias de regime especial com a função de regulação, exercem no Brasil, com o estabelecimento da Administração Pública Gerencial, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, funções quase judiciais, desenvolvidas no âmbito dos processos administrativos, o que no Brasil de hoje não exclui o controle judicial, e funções quase legislativas ao editar normas com força de lei - gerais, abstratas, imperativas -, desde que:
autorizada por lei específica (a lei de criação da autarquia de regime especial), sempre limitada pelos standards, pelo princípio do devido processo legal substantivo e pelo princípio da legalidade em si - delegação legislativa;
Observe os standards contidos na Constituição e nas leis para que seja válida - standards são conceitos indeterminados, diretrizes e princípios que norteiam a atuação legislativa da agência reguladora - princípio do devido processo legal substantivo;
Submetida à revisão jurisdicional de validade da norma criada conforme sua razoabilidade, adequação e racionalidade em relação aos standards - controle judicial do conteúdo das normas com base no princípio do devido processo legal substantivo (muito próximo ao princípio da razoabilidade) -, o que ainda tem aplicação muito limitada no Brasil, como as restrições impostas pelo STF para cabimento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN) contra atos normativos da Administração Pública; e
Permita a participação popular em sua edição, sob pena de ilegalidade - observância de procedimento administrativo com a participação do cidadão -, como pela divulgação dos projetos, realização de audiências públicas, recebimento de sugestões, obrigatoriedade de motivação quanto à aceitação ou não dessas sugestões pela agência, o que nem sempre é efetivado na prática.
Observação 01! A delegação legislativa no Brasil não encontra amparo na Constituição, salvo hipóteses expressamente previstas, ainda assim sem caráter de obrigatoriedade, o que retira grande parte da legitimidade democrática da atuação das agências.
Observação 02! Marçal Justen Filho classifica a regulação como uma atividade administrativa, juntamente com as quatro tradicionais, quais sejam, serviço público, polícia administrativa, fomento e intervenção.
Observação 03! As normas editadas pelas agências reguladoras não estão sujeitas a qualquer processo de elaboração normativa, seja para sua formulação, seja para sua alteração e revogação, o que lhes imprime menos segurança em relação às normas editadas pelo Legislativo, para além da diminuição de sua legitimidade democrática, também em relação a elas.
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